Há muito muito tempo, existia um lugar onde ainda não tinham sido inventadas as linhas.
Por essa razão, as pessoas que viviam nesse lugar eram simultaneamente felizes e infelizes; estavam constantemente num estado de ansiedade contraditória. Ora destroçadas pela incapacidade de se definirem, e regularem, ora exaltadas e vibrantes e celebratórias por serem a mais bela imagem da unidade primordial, a osmose completa.
Aparte toda a ansiedade, de que me abstenho de aprofundar, o que nos interessa neste pequeno conto ou evocação é a incapacidade que estas pessoas tinham em brincar.
Brincar, ou jogar, significa em traços largos (traço era também uma palavra inexistente neste lugar antigo) ressignificar as linhas, e tornar distintas mas também cinzentas as regras; opções, comando, controlo. As pessoas sem linhas não brincavam porque a distância entre dentro ou fora não existia, assim como a distância entre uma pessoa e outra pessoa. Não sabiam brincar, pronto. Não tinham condições reunidas para que se brincasse. Para que se fizessem brincadeiras e jogos.
A tristeza era um dos estados generalizados (também ela não tinha limites e se juntava a outros estados), porque embora estas pessoas não tivessem nunca brincado, sentiam-lhe a falta.
Talvez não estejamos longe de compreender este lugar de angústia mas em diferentes direcções.
1+2 = A CORRIDA
A Luísa, insubordinada, também decidiu que jamais deixaria de habitar esse tempo de cacofonias intermináveis, a partir de onde se é criança. A sua estratégia, pelo que posso verificar, foi inventar as linhas para o mundo de onde elas tinham desaparecido ou nunca entrado. (Ninguém me contou e posso estar errada, mas uma vez conhecido o conto acima, não hesitei nesta compreensão.) E a partir daí poder brincar novamente, ou melhor, brincar primeiramente, recobrindo a significação dos significados (é melosa esta frase, para ficar colada na boca) que por cá - no nosso lugar - existem; o que é uma rede, o que está fora, quem é o Bacon, a distância e complementaridade entre as cores. Quem vê de fora, e há muito deixou de ser criança, poderá fazer perguntas idiotas - e isto, porque a insolência não existe nesta nesta linguagem horizontalizada - olhando para esta obra, ou poderá deixar-se escorregar para dentro da brincadeira e arriscar saltar as linhas, segmentos, planos, despido do seu (li esta diferenciação num livro que me divertiu muito, O Animal Social) e arriscar cair - AAAAAAHHHHHH - no , que ao que consta é mítico, tem uma dimensão que foge ao pensamento paradigmático e que se prende com alguma coisa próxima da ética, ou da linha que a separa da moral - a distinção entre bem, mal; sagrado, profano - existindo com uma muito maior compreensão emocional e capacidade narrativa (eu acrescentaria mesmo, literária). Deixo apenas o final de uma descrição de uma brincadeira, presente no mesmo livro, porque acho óptima, e nos serve o caminho:
"Os rapazes reagiram aos invasores com alarme e medo. Lutaram sobre o tapete e alinharam os cavalos contra os invasores, mas gritavam uns para os outros: Tudo parecia perdido. Mas Harold inventou um cavalo branco gigante, dez vezes maior do que os brinquedos com que brincavam. , gritou ele, e respondeu à sua própria pergunta: Que investiu contra os invasores. Dois outros rapazes mudaram de equipa e começaram a atirar invasores contra o Cavalo Branco. Uma batalha apocalíptica. O Cavalo esmagou os invasores, mas os invasores feriram o Cavalo. Os invasores estavam quase todos mortos, mas o Cavalo também estava a morrer. Então, taparam-no, fizeram-lhe o funeral e a alma do Cavalo subiu ao céu."
Ao Cavalo da Luísa, que veio jogar todos os jogos e salvar-nos de um tédio existencial e de um aborrecimento da continuidade (seremos o Rei deste Cavalo?) - e quem sabe o que fará numa próxima exposição - tive vontade de escrever uma dedicatória, em formato de versos, com a qual me despeço.
Excerto do texto Play Play Play, por
Catarina Real
Zidane corre, entre a bola e o outro, trespassado pelo movimento e a matéria, o grito e o calor, a tensão e a imersão, a palavra de dentro e de fora de campo. O tempo da corrida de Zinadine Zidane no ensaio cinematográfico 21st Century Portrait (2006) de Douglas Gordon e Phillipe Parreno é o retrato de um tempo todo, dentro e além do evento.
A Corrida de Luísa Abreu abre-se a essa potência diáfana (corpo translúcido) do tempo, fora e dentro do que aqui se dá a ver, um lugar onde o tabuleiro é a região aberta de um espaço anacrónico e translúcido. Se o nosso olho nos encaminhar para as partículas, as pinturas, objetos, formas e teias, tecidos e marcos, dados e objetivos, o nosso olho apenas avista esses corpos de cuja uma noção de tempo e espaço maior os absorve. O que vemos é se não mais o tempo todo do jogo e da criação. A pintura, o desenho e a escultura das formas assinalam um mapeamento mnemónico do universo visual da obra de Luísa Abreu. De recuos e avanços, Corrida é uma nova prova de vizinhança, energizando essa camada de tensão que se agita no lado a lado das formas e signos do seu imaginário.
A Grelha passa a existir enquanto espaço orbital onde os signos que nela habitam são do termo molecular e embrionário, movimentando-se dentro e fora da sua esquadria, dinâmica tal, confirmada pela própria grelha, que se torna também ela signo, obstruindo todas as camadas do espaço. É esse sentido de habitar que lateja na instalação pictórica que Luísa Abreu organiza em todo o espaço da galeria, habitamos este constructo, este lugar tabuleiro, onde as formas, matérias e agora o corpo de quem nela habita, correm e percorrem. Se olhamos para um tabuleiro de jogo como um lugar matriz, será também esta exposição uma instalação matriz, onde tudo o que possa compor o seu imaginário habita num espaço em potência. Exposição-tabuleiro que se coloca sobre a mesa -- chão paredes, tetos e pilares da galeria, são rebatidos e estendidos numa composição imagética. Talvez seja esse o lugar expositivo como lugar de mesa, onde nos damos ao outro, onde professamos com ele, onde nos propomos a ele. O tabuleiro, ou agora a exposição, como timeline, desdobrando-se como um mapa onde montamos e remontamos as imagens, constituímos e ativamos o arquivo das formas e em seguida, sentamo-nos, conversamos, jogamos, expandimos.
Excerto do texto O sentido [além] binário do jogo
por João Terras